Um casal chileno tem acesso ao tratamento para apenas um dos filhos — e o medicamento custa milhões de dólares. Vicente quer ser chef, e Lucas quer ser DJ.
Como qualquer criança da idade deles, os gêmeos de 13 anos, que vivem no sul do Chile, vão à escola, brincam e sonham com o que gostariam de ser quando crescer.
Mas suas expectativas e qualidade de vida dependem de um tratamento.
Ambos foram diagnosticados, aos sete anos, com distrofia muscular de Duchenne, uma condição genética grave e progressiva que piora rapidamente, e afeta aproximadamente uma em cada 3,6 mil crianças no mundo todo.
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Não há cura para a doença, mas houve avanços em um medicamento que poderia retardar seus efeitos e melhorar a perspectiva dos pacientes.
Há algumas semanas, seus pais, Marcos Reyes, de 39 anos, e Valeria Martínez, de 35, receberam uma boa notícia.
Tomás Ross, um menino cuja mãe caminhou 1.200 quilômetros no Chile para arrecadar dinheiro suficiente para tratá-lo da mesma doença, foi aceito para participar de um ensaio clínico nos Estados Unidos, o que disponibilizou sua dose.
E a família dele decidiu ceder a dose para os pais de Vicente e Lucas.
"Este gesto deles como família é muito importante para nós. É sobre a vida dos nossos filhos, e seremos gratos pelo resto de nossas vidas. Nem todo mundo tem a capacidade de abrir mão de uma dose como essa. Foi um momento de muita felicidade, de muita gratidão", disse o pai dos gêmeos, Marcos Reyes, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Mas essa alegria logo se misturou a um sentimento de incerteza e angústia.
Como se trata de uma dose única, Marcos e Valeria agora enfrentam um dilema impossível: escolher apenas um dos gêmeos para administrar o tratamento que ambos precisam.
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Uma doação inesperada
Camila Gómez, mãe de Tomás Ross, disse que pensou imediatamente nos gêmeos quando soube que seu filho havia sido selecionado para um ensaio clínico.
Foi Marcos Reyes, pai de Vicente e Lucas, que teve a ideia da caminhada que ajudou a aumentar a conscientização sobre a distrofia muscular de Duchenne no Chile e, por meio de doações, permitiu que ela arrecadasse o dinheiro necessário para tratar o filho de 6 anos.
Além disso, foi Reyes quem a acompanhou pessoalmente na travessia de Ancud até o Palácio de La Moneda, a sede do governo em Santiago.
No dia 7 de abril, Marcos Reyes recebeu a ligação de Camila Gómez cedendo a dose do filho que havia sido liberada.
"Marcos caminhou comigo... ele tem uma dupla tarefa, porque precisa arrecadar o dobro de dinheiro que eu arrecadei, então isso o alivia da metade. Agora ele tem que decidir em qual gêmeo administrar a dose primeiro", disse ela em entrevista à imprensa local.
Até o momento, o único remédio aprovado pelo FDA, órgão regulador de medicamentos nos EUA, para tratar a doença é uma droga conhecida comercialmente como Elevidys, cujo valor chega a aproximadamente 3,5 bilhões de pesos chilenos (cerca de US$ 3,7 milhões ou R$ 20,4 milhões).
O medicamento não é vendido no Chile, e não foi aprovado pelo Instituto de Saúde Pública. A ministra da Saúde do país, Ximena Aguilera, afirmou que não há evidências suficientes de seus efeitos positivos no tratamento da distrofia muscular de Duchenne.
Até o ano passado, os gêmeos não tinham direito a receber o medicamento, pois a injeção era recomendada apenas para crianças mais novas. No entanto, quando essa restrição foi suspensa, Marcos Reyes decidiu repetir a caminhada, agora para obter o tratamento para os próprios filhos.
Com a meta de arrecadar dinheiro para tratar os dois, o pai dos gêmeos iniciou sua própria jornada em 16 de março, caminhando também de Ancud a Santiago.
'Entre a cruz e a espada'
Marcos Reyes caminha enquanto fala por telefone com a BBC News Mundo. Ele está cansado. Faltam apenas algumas horas para chegar a Santiago, onde espera ser recebido pelo presidente chileno, Gabriel Boric.
O pai dos gêmeos diz que ele e a esposa se sentem diante de um dilema impossível.
Decidir a qual dos filhos dar a medicação é algo complexo, uma vez que a doença é de natureza progressiva, e cada dia que passa sem tratamento conta.
A distrofia muscular de Duchenne é desencadeada por um gene defeituoso que resulta na ausência de distrofina, uma proteína que ajuda a manter as células do corpo intactas.
Os pacientes podem desenvolver sintomas como fadiga, dificuldades de aprendizado, fraqueza muscular, problemas respiratórios e deficiências cardíacas.
Marcos acredita que seria mais fácil se houvesse critérios médicos que os obrigassem a escolher um dos filhos, mas não é este o caso.
"A verdade é que nos sentimos entre a cruz e a espada, porque também não conseguimos esperar muito tempo para que um deles receba o tratamento. E, obviamente, ainda há a incerteza do que faremos pelo outro", diz ele.
"Isso tem sido muito complexo. Já me perguntaram várias vezes se não deveríamos privilegiar critérios médicos para tomar essa decisão. Mas a verdade é que os gêmeos tiveram a particularidade de, ao longo da vida, apresentarem níveis respiratórios e cardíacos sempre muito semelhantes. Então, a verdade é que vai ser complexo pensar que não vai ser uma decisão médica — mas, sim, uma decisão do coração."
Os pais de Vicente e Lucas estão desesperados porque, apesar da caminhada de Marcos, eles só conseguiram arrecadar 1,3% do valor total necessário para financiar o tratamento do outro gêmeo, cerca de US$ 27,8 mil (aproximadamente R$ 163 mil).
"Está sendo impossível arrecadar os fundos", diz o pai dos meninos.
"Sabendo que estamos muito longe da nossa meta, provavelmente vamos ter que tomar uma decisão mais cedo ou mais tarde. Infelizmente, se não conseguirmos levantar os fundos ou se nenhum milagre acontecer, sabendo da necessidade e da urgência, vamos ter que saber como decidir por um dos gêmeos. Mas estamos tentando esgotar todas as possibilidades antes de tomar esta decisão", acrescenta.
'Eles precisam continuar sendo crianças'
Marcos diz que até agora nem Vicente nem Lucas sabem da situação que ele e a esposa enfrentam como pais. Eles preferiram proteger ao máximo seu universo infantil. Mas ele sabe que outro desafio que vão ter que enfrentar como família é explicar que apenas um dos meninos vai poder viajar para os Estados Unidos, se não conseguirem fundos para o outro.
"Criamos uma família forte para eles, na qual os meninos sabem que têm uma doença, sabem que não andam como as outras crianças, mas levam uma vida normal. Eles vão à escola, têm suas responsabilidades, não há uma grande diferença entre eles e uma criança da mesma idade. Não vivemos pensando o tempo todo na doença, nem limitando eles, nem nada", explica Marcos.
"Eles têm sonhos, querem crescer, estudar, ter uma profissão. Vicente quer ser chef, Lucas quer ser DJ, ele ama música, mixagem e tudo mais. E a verdade é que nunca quisemos falar sobre a doença a fundo com eles. Pela mesma razão, não queríamos envolvê-los nesse processo, porque eles simplesmente precisam continuar sendo crianças."
O pai das crianças enfatiza que "quando tivermos que tomar a decisão, vamos ter que conversar, porque envolve várias coisas, não apenas escolher um deles, mas separá-los por um período bastante longo. São cerca de seis meses de permanência nos Estados Unidos, e os gêmeos nunca se separaram, nem nós, como família. Exceto quando me ausentei para fazer as caminhadas. É complicado, mas por enquanto não quero que eles percam a paz e a tranquilidade que têm e merecem por serem crianças".
O único vislumbre de esperança que Marcos vê no horizonte é a generosidade das pessoas comuns. Ele convoca todos que conhecem sua história a fazer doações em seu site.
Caso contrário, ele diz, "a única coisa que me vem à mente é que o laboratório tenha empatia... em relação a este caso específico, de gêmeos com distrofia de Duchenne, não há muitos no mundo, e a verdade é que parece muito cruel administrar a terapia em apenas um. Então, espero que o laboratório tenha uma linha de responsabilidade social ou algo semelhante que possa nos ajudar para que isso não aconteça, e que possamos ter o tratamento disponível para ambos."